Bom
estar novamente com vocês, amigos e gente que acessa o site TORDESILHAS,
abrangente, que enfoca todos os assuntos palpitantes da semana, mas também dá
um tempo para curtir literatura, arte e a vida.
Hoje
meu principal assunto é o poeta Fernando Braga. Falecido sexta feira, 11 de
março, daqui pra lá é uma distância infinita, mas acredito que ele chegou lá no
mesmo dia e na mesma hora. Refiro-me ao céu dos poetas.
Esse
céu não está nem à esquerda, nem à direita, nem no cento, nem acima e nem
abaixo daquele outro Céu maior onde todos cabem. Quer dizer, os chamados, os
escolhidos.
Situa-se
num espaço invisível e inexistente, mas existe. Os poetas tampouco se importam
que seja um céu de brincadeira, de faz de conta, só pra inglês ver. Os poetas
não estão nem aí que esse céu dure apenas os minutos que se leva para ler um
soneto que termina com os versos “enfim, subi ao céu do meu desejo, àquele céu
que busco e que almejo” e após isso todos voltem para cantar em seus labirintos
e abismos.
O
Fernando Braga, que conheci em São Luís há mais de cinquenta anos e de quem fui
amigo todo esse tempo é um desses poetas citados no parágrafo anterior. Ou
seja, um verdadeiro poeta e um poeta verdadeiro. Mais humano e mais humilde do
que todos nós que vivemos e estivemos ao seu redor. Vamos ler o Fernando:
O QUE SOMOS
Sou
feito de sangue e vísceras,
como
o porto é feito de choro e pedras;
Sou
feito de tronco e membros,
como
o navio é feito de ferro e esperas;
Sou
feito de carne e ossos,
como
o mar é feito de sal e abismos;
Sou
feito de razão e sentidos,
como
o rio é feito de margens e mangues;
Somos
todos poetas de espaços contidos,
feitos
de sonhos e ajustes...
Conheci e encontrei o
Fernando Braga pela primeira vez numa das sessões etílico-literárias promovidas
pelo Erasmo Dias em sua casa-caverna na Rua do Apicum, rodeado de velhos e
novos escritores, bebuns e candidatos a qualquer coisa. Numa tarde de sábado,
encharcada de cachaça e cerveja, sustentada por pedaços generosos de carne de
carneiro, uma das apreciações gastronômicas do velho Judeu Errante.
Por essa época, o
Fernando já havia publicado seu primeiro livro Silêncio Branco, pouco depois
sairia seu segundo livro Chegança, e depois Ofício do Medo e ele foi-se para
Brasília e eu fiquei ainda no Maranhão, até que em julho de 1976 desembarquei
também no Distrito Federal, para onde ele fora dois anos antes.
Durante minha breve
estadia na Capital Federal, nos vimos e nos falamos algumas vezes, uma delas
numa tarde noite, onde revivemos nossos encontros de São Luís e cujo cardápio
foi o de sempre: poesia, cerveja, literatura, autores, uma boa comida, etc. e
tal.
Em fevereiro de 1977
quando deixei Brasília para me aventurar nos mares do sul, nos perdemos do
radar que nos aproximava fisicamente, mas continuamos ligados pelas lembranças
e pelos laços afetivos e espirituais que tempo nenhum apaga, por mais longo que
seja. Mais dois poemas do bardo:
O Puro Longe
A
vida é mais lírica em um cais
porque
ele é feito
de
saudade e esperas.
Estou
só no tombadilho
de
meu barco,
que
rasga as franjas das águas
em
rumo do puro longe.
Nada
há em meu redor,
a
não ser um rondó
de
expectativas...
O
puro longe, para onde vou,
não
é apenas
um
poema marítimo,
mas
uma ode silenciosa.
Oh!
Peso imenso!
Ó
mar sem fundo nem margens,
onde
nada acho de mim,
senão
nada em tudo!
MEUS VERSOS
“Aprendi esta língua como se consegue o
amor de uma mulher”
ValéryLarbaud
Meus versos surgem de repente, sem
anúncios
preconcebidos, e assim, a esmos e
inconsúteis,
se amesendam nas múltiplas
intransitividades
que na vida hei passado como poeta e
bruxo.
Há entre mim e eles, uma brancura
bipartida
em orgânica dualidade, simples e
ressurgida,
numa cumplicidade inconsciente e
consentida,
mas comedida, necessária, útil e
dependente.
Há entre nós uma parceria, como se
heterônimos
dalgum poeta fôssemos, onde eles, meus
versos,
sorrateiros nas paráfrases se permitem
comigo
logo no primeiro grito, sentir a dor
que sinto,
mas que nunca em tempo algum deveras
finjo.
Eles e eu somos um só Fernando, uma só
Pessoa…
Finalmente desde 2018, e graças à internet, nos reaproximamos,então,num
contato diário e permanente, duas a três vezes por dia nos comunicávamos, por
mensagens escritas, ou áudios, ou chamadas de voz e vídeo,
até uns quatro dias antes dele descansar do sofrimento físico, principalmente
de meados de 2021, que eu debito, certo ou errado, a essa maldição do comunismo
chinês e a esses tais globalistas, progressitas, seja o “ista" que for.E
cujos nomes conhecidos são o George Soros e o Bill Gates e que escondem muitos
outros nomes de cavaleiros do apocalipse.
Pois foi após duas infecções da Covid 19, e três doses dessas
drogas vacinais, que o meu amigo começou a caminhada do seu calvário,até
falecer no dia 11 de março de 2022, qual um cristo menor e humano, numa sexta
feira, às três horas da tarde.
Vou ficar mudo. Tenho mais nada a dizer neste artigo a não ser que
deixo com vocês este texto, do seu livro inédito CONVERSAS VADIAS,tão saboroso
quanto um pernil recheado ou um chocolate trento, pois era assim que escrevia o
Fernando Braga, um poeta iluminado.
CONVERSAS VADIAS
O Gênio Florestal *
[Memórias]
Quem alcunhou Manuel Nunes Pereira, um dos maiores etnólogos brasileiros,
de ‘gênio florestal’, foi um homem que tem a poesia na alma e um dodecassílabo
no nome: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac.
Manuel Nunes Pereira, infelizmente pouco conhecido pelos nossos
conterrâneos e por seus pares da Academia Maranhense de Letras, foi uma das
pessoas mais extraordinárias e generosas que tive a felicidade de conviver; foi
criado na velha ‘Casa das Minas’, de origem daomeana, com traços da religião ou
mitologia jêge-nagô, com culto Vodu, na Rua de São Pantaleão; nasceu em São
Luís do Maranhão, em 26 de junho de 1893; era filho de Mãe Almerinda e afilhado
da velha Nochê, Mãe Andreza Maria; e morreu no Rio de Janeiro, noventa e dois
anos depois, em 27 de fevereiro de 1985.
Leiam este seu depoimento, gravado em bronze numa placa comemorativa,
afixada no Jardim Botânico, do Rio de Janeiro: "Nasci em São Luís,
Maranhão, e tenho orgulho e estabeleço uma ligação entre este berço, entre o
local onde nasci, que foi na Rua do Sol, o fato de ter o espírito iluminado
pela verdade e para a beleza. Nasci na Rua do Sol, mas homem feito relacionei a
minha vida, o meu destino (estou repetindo isso por toda parte), relacionei o
meu destino com o destino de Anteu, que é um personagem da Mitologia Grega,
vivia no céu, mas periodicamente descia à terra, tocava a terra, e voltava pro
céu mais forte. Ocorre isso comigo há muitos anos. Toda vez que me sinto fraco
por onde ando, não no céu, mas por essa terra, por esses Brasis afora, toda vez
que me sinto fraco, volto à minha terra e ganho uma robustez física e
espiritual..." MANUEL NUNES PEREIRA (1893-1985).
Foi muito cedo para Belém do Pará e depois para Niterói e Rio de Janeiro,
onde abandonou o curso de direito para estudar veterinária, biologia e
botânica, especializando-se em etnografia e etnologia, cujas ciências dedicou
sua vida inteira até aposentar-se pelo Ministério da Agricultura, possuindo
nesse campo científico, um dos maiores acervos do país, em livros, documentos,
anotações, fitas, filmes e registros das mais variadas espécies.
Era um etnólogo do porte de Roger Bastide, de Arthur Ramos e de Levi
Strauss, e “um homem de ciência agudamente provido de sensibilidade e visão
humanística, eis o que é o caboclo maranhense Nunes Pereira”, na visão
sensível, mas objetiva, de Carlos Drummond de Andrade.
Era membro da Academia Maranhense de Letras, para onde foi eleito duas
vezes; a primeira ele não tomou posse no prazo regimental, tendo sido, por
isso, passivo de uma nova eleição que o ratificou na cadeira nº 23, patroneada
por Graça Aranha, e até pouco ocupada pelo engenheiro e mestre em
Desenvolvimento Urbano, LuisPhelipe Andrés, hoje na glória da luz de Deus;
Nunes Pereira é também um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras, onde
era amado e querido por todos, principalmente pelo poeta Thiago de Mello,
recentemente falecido; conheceu e foi amigo de seu conterrâneo Maranhão
Sobrinho, um dos maiores poetas simbolistas do Brasil.
Como prova de sua grandeza em direção do bem, trago a este dedo de prosa
o nosso escritor Jorge Amado que assim explana, em ‘Literatura Comentada’,
edições Abril [1981-2]: “... Antes de decretarem o Estado Novo cheguei a Manaus
e fui preso... Fui colocado numa cela com o Nunes Pereira, o etnólogo, um homem
encantador. Eu e o Nunes Pereira passávamos o dia inteiro debaixo do chuveiro
porque fazia um calor infernal, e os integralistas desfilavam na frente
ameaçando a gente de morte ...”
Estas são algumas das publicações de Nunes Pereira: A Casa das Minas:
contribuição ao estudo das sobrevivências do culto dos ‘voduns’, do panteão
Daomeano, no Estado do Maranhão, Sociedade Brasileira de Antropologia e
Etnologia, 1947 2ª.ed., Petrópolis, Vozes, Rio de Janeiro, 1979; Moronguetá -
Um Decameron Indígena. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967 e 1976, 2
vols. [Coleção Retratos do Brasil, nº 50]; Panorama da alimentação indígena:
comidas, bebidas e tóxicos na Amazônia Brasileira. Rio de Janeiro, Livraria São
José, 1974; Os índios Maués. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1954;’Curt
Nimuendaju’, [Síntese de uma vida e de uma obra], 1946; (Opúsculo) [A tartaruga
verdadeira do Amazonas] de 17 páginas foi elaborado pelo veterinário Nunes
Pereira e trata de uma obra bastante interessante e extremamente difícil de ser
encontrada nas bibliotecas e acervos públicos.
Dentre as muitas lembranças e saudades deixadas por Nunes Pereira, uma
placa de bronze foi inaugurada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, por
ocasião de seu centenário de nascimento, cuja confecção foi providenciada pelo
último secretário do cientista, o pesquisador ítalo-brasileiro SavérioRoppa.
Certa vez, no Rio de Janeiro, contou-me Nunes Pereira, procurou o
escritor Coelho Neto, nosso conterrâneo ilustre para lhe pedir, dado seu
prestígio, uma colocação em qualquer abrigo, desde que o remunerasse, para que
ele, o jovem maranhense, pudesse custear os estudos e pagar em dia a francesa
dona da pensão, a qual fazia uma algaravia infernal quando recebia a
mensalidade fora do prazo combinado.
Numa noite qualquer, em casa de Coelho Neto, o jovem disse ao mestre o
prazer que tinha em cumprimentá-lo e o motivo da visita. Depois de ouvi-lo, o
‘Príncipe da Prosa Brasileira’ levantou-se e se dirigiu à sua escrivaninha, e
lá, de pé, como dizem que escrevia, o autor de ‘Rei Morto’ minutou num papel
timbrado com seu nome, um bilhete endereçado a um tal Prestes, Diretor das
Docas do Rio de Janeiro, que dizia textualmente isto, que me foi ditado pelo
velho etnólogo:
“Prestes amigo, O
portador, Manuel Nunes Pereira é do Maranhão como eu; e em sendo de tal terra é
natural que faça versos, pois é filho da ‘Oliveira e da Cigarra’. Ele está
precisando de uma colocação aí nas docas do Rio de Janeiro, de cujo parasitário
és defensor perpétuo e escarchas contrabandistas. Se deferires este meu
requerimento, saberei cantar-te agradecido em rimas d’oiro. Um abraço. Do teu,
Coelho Neto”.
Essa empreitada infelizmente foi frustrada. O diretor das docas do Rio
de Janeiro não atendeu ao pedido do ‘Príncipe da Prosa Brasileira’, resultando
apenas desse ilustre pedido, a tomada do bilhete pelo próprio Nunes Pereira que
o guardou como lembrança.
Parnasianamente, “numa noite assim, de um céu assim...” Nunes Pereira
desembarca em Brasília para receber o ‘Prêmio do Mérito Indigenista’ que seria
outorgado pelo Ministério do Interior, através do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária [INCRA], presidido na época, pelo engenheiro
agrônomo Lourenço José Tavares Vieira da Silva, cuja chefia de gabinete era
dirigida pela competência e fidalguia do Dr. Clóvis Viana Soares da Fonseca, o
grande ‘Cireneu’ para o sucesso do evento, desdobrado desde a localização do
agraciado em Rondônia, por uma das Coordenadorias do INCRA, até à remessa das
passagens aéreas. Esse prêmio lhe fora outorgado em razão da publicação de sua
obra em dois volumes ‘Moronguetá - Um Decameron Indígena’, a qual o contemplara
com o prêmio ‘Roquete Pinto’, da Academia Brasileira de Letras.
Como de costume, e para minha honra, levei-o para minha simples
companhia, em nosso apartamento, como sempre improvisava. Quando de sua
chegada, naquela noite, bebemos uns goles de pinga que ele trouxera de
Ji-Paraná, cidade de Rondônia, de onde era egresso naquela noite, e já onde se
encontrava por algum tempo a pesquisar indígenas daquela região, tempo em que
providenciávamos o preparo de um ‘tambaqui’ que também trouxera carinhosamente
consigo. E varamos a madrugada como se estivéssemos à margem do Rio Madeira...
No dia seguinte, pela manhã, fomos a uma livraria que distribuía os
livros da ‘Civilização Brasileira’, para comprar os dois volumes de
‘Moronguetá, Um Decameron Indígena’, que o velho esquecera de trazer para
presenteá-los ao Ministro do Interior; e à tarde, foi o evento: justo quando
Nunes Pereira autografava os volumes, o ministro, num gesto de gentileza,
disse-lhe: “Já li alguns livros seus...” o que fez Nunes Pereira esboçar um sorriso
de hiena e devolver-lhe o agradecimento em tom de blague: “Já se vê, ministro,
que o senhor anda a ler alguma coisa!...”
Chegado o dia de sua volta, fui levá-lo ao aeroporto e, num desses voos
que aparecem não se sabe de onde, eis que surge o Fernando Lobo, jornalista,
poeta, compositor e, orgulhosamente, como ele mesmo dizia, pai do Edu Lobo. Ao
ver o velho Nunes dirigiu-se a ele com carinho e pilhérias bem à moda dos dois,
sendo de logo a mim apresentado, tempo em que rumamos para o restaurante do aeroporto,
onde nos amesendamos, entre aperitivos, reminiscências e piadas; lá pelas
páginas tantas, depois de ter perdido uns três aviões da ponte-aérea, o velho
Nunes perguntou-me se eu não queria ir com eles para o Rio de Janeiro, a tirar
do bolso do paletó um ‘bilhete’ de passagem a sugerir que eu fosse ao balcão da
companhia marcar uma ida, caso tivesse vaga... e sempre tinha...E assim foi!
Já no Rio de Janeiro; despedimo-nos do Fernando Lobo, uma pessoa que
jamais esqueci pela inteligência e simpatia irradiadas, e seguimos para a
Avenida Almirante Alexandrino, em Santa Teresa, endereço que escondia o velho
cientista, momentaneamente vazio, vez que seus familiares se encontravam de
veraneio em Nova Friburgo, no Estado do Rio.
No dia seguinte, o ‘bondinho de Santa Teresa’, cansado de carregar
artistas e boêmios, nos deixou quase sem querer no ‘Amarelinho’, na Cinelândia,
[donde nunca devera ter saído], e onde gastamos toda tarde daquele dia ao
encontrarmos, por feliz coincidência, Nauro Machado, Franklin de Oliveira e
Lago Burnett...à noite retornei a Brasília.
Desandando o fio à meada, quis os desígnios de Deus que eu estivesse em
Porto Velho, no Estado de Rondônia, antigo ‘Território do Guaporé’, a realizar
um trabalho temporário que fui designado a fazê-lo; lugar em que também, por
períodos temporais, era núcleo natural de estudos antropológicos do velho Nunes
Pereira, para onde os ventos da vida nos uniria pela derradeira vez...
Algum tempo depois,
certa manhã chuvosa, para ser mais triste que de costume, ao atravessar uma
praça da cidade onde ele era muito conhecido e querido, um jornaleiro passou a
apregoar o ‘Alto Madeira’, o maior jornal da região, com uma voz de lamento:
“Atenção! Morreu no Rio de Janeiro, o Doutor Nunes Pereira!” Atenção! Morreu, no
Rio de Janeiro, o Doutor Nunes Pereira!”.
Comprei um exemplar do jornal, encostei-me à mureta da Praça e ali
mesmo, antes de ler a notícia, “rezei como o salmista na caverna, e olhei para
minha direita e vi; mas não havia quem me conhecesse; refúgio me faltou;
ninguém cuidou de minha alma”; e ali mesmo chorei... chorei muito!...
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* Fernando Braga,
in ‘Conversas Vadias’, [Toda prosa] antologia de textos do autor.
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